Hoje amanheci exaltando
minha adorada infância, que os tempos não trazem mais. O vento frio soprou em
meu rosto me fazendo lembrar coisas que me aconteciam quando ainda vivia com
minha amada mãe. Não sei por que cargas d’água, lembrei as farinhadas de minha
infância. Quase todo mundo tinha uma casa de farinha. E as casas de farinhas
eram o nosso teatro, nosso cinema, nosso parque de diversões, nosso circo... Quando
a mãe anunciava: “Hoje começa a farinhada de fulano!”, todos corriam e pegavam
uma faquinha ou uma “facona” e direcionavam-se à casa de farinha. A vizinhança
toda se fazia presente, embora fosse pouca a mandioca a ser transformada em
farinha. Enquanto alguns raspavam a mandioca, outros lavavam, serravam,
imprensavam, retiravam a goma, torravam, faziam beju, outros ficavam a
entreter-se e a entreter os que estavam trabalhando com conversas, seja lá
sobre que assunto fosse e a garotada ora ficavam a ouvir, ora ajudava, ou então
estava a brincar, do lado de fora da casa, de cabra-sega, esconde, caí no poço,
ciranda, guerra e tantas outras brincadeiras que não me saem da memória. Eu
gostava de brincar é claro, mas o que mais me agradava era ouvir aquelas
conversas de adulto: piadas, “falanças” da vida alheia, ou da vida dos presentes
mesmo. Tinha aqueles ousados que contavam histórias sobrenaturais de almas,
lobisomens e tantos outros seres que eu nunca vi, mas eles sim e narravam a
história toda, onde, quando e como tinha acontecido. Aquilo tudo me deixava
fascinada, embora depois, com muito medo, voltava para casa grudada na barra da
saia da mãe de tal forma que não podia o vento balançar uma folha a meu lado
que eu seria capaz de me borrar toda. Alguns metidos a artistas cantavam
animando a noitada da farinha. Isso, às vezes, durava dias, dependendo da
quantidade de mandioca que tinha. Sempre tive a impressão que os trabalhadores,
homens e mulheres de bem, faziam-se demoradas no trabalho só para a farinhada
durar mais dias, ou talvez fosse só ideia boba da minha cabeça. Verdade é que
eu faltava pedir para que eles fizessem isso. A infância ia passando e eu
entrava numa fase interessantíssima, a fase da adolescência, das paixões, dos
amores e desejos ardentes. E a farinhada acompanhava-me. Desta vez eu não
ficava só ouvindo, ou brincando e já não trabalhava por prazer. Pois o que
queríamos mesmo era estar lá fora a inventar poemas e paquerar um vizinho
bonitinho que há tempos as meninas comentavam sobre suas qualidades. Mas nossas
mães nos punham a descascar a mandioca, ficava agradável se o tal rapaz
estivesse também trabalhando. No meio da conversa dos adultos ficávamos a
trocar aqueles olhares comunicativos mais que palavras. E isso era bom!
Quando conseguíamos
escapar de nossas mães, ficávamos lá fora sentados ou numa calçada ou numa raiz
de uma enorme arvore a inventar poesias, a declamar as que já existiam, a
tentar adivinhar aquelas adivinhaçõezinhas, a cantar e assim namorávamos. As
mais ousadas e os ousados afastavam-se um pouco e ficavam no escurinho. De lá
só ouvíamos sussurros e estalar de beijos. Nós ficávamos a rir baixinho e a
vigiar. Todos nervosos, não mais que os enamorados, mas sim, também ficávamos,
sobretudo quando alguma mãe soltava aquele grito chamando a filha ou o filho.
Dava-nos aquela sensação
gostosa de medo e prazer. Medo de sermos pegos por nossas mães, ou pior pelos
pais, e prazer por estarmos burlando as regras daquele jogo que se chamava
educação familiar. Prazer por finalmente conseguirmos uns beijinhos do garoto
cobiçado, ou simplesmente por estar no meio da turminha jovem.
Quando já estava no
finalzinho, já tarde da noite, corríamos para dentro da casa. Era hora de
dividir os bejus, cada família presente levava um beju enorme para casa, um
pouco de farinha... Nós dávamos um jeito de começarmos a comer o beju logo ali.
Eu ainda gostava de ouvir
as conversas dos mais velhos, gostava dos grupinhos de jovens ouvindo e criando
poesias, das brincadeiras e dos namoricos, das cumplicidades e dos comentários
entre as meninas e sem sombra de dúvidas dos comentários dos meninos. O triste
é que ficávamos adultos com o passar do tempo e muitas meninas passavam dos
sussurros e beijos estalados e tornavam-se mães e logo casavam, outras feito eu,
íamos para a “cidade grande” estudar e acabávamos trocando as casas de farinha
por teatros, cinemas, parques e circos modernos. Nunca pensei que aquele
lugarzinho que me fazia tão feliz fosse mudar tanto. Hoje quase não se vê uma casa
de farinha, quase não se vê a vizinhança reunida e as brincadeiras e namoricos
foram substituídos pela virtualização. É bom retornar aquele lugarzinho de
minha infância e saber que na casa de fulano, distante de casa, vai ter
farinhada e melhor ainda é saber que mamãe vai e assim poder ir também. Hoje já
não ficamos brincando ou sendo cúmplices de namoricos, mas ainda nos resta
ouvir a conversa daqueles mais velhos que lembram como era no tempo deles.
A.R.MORAES