quinta-feira, 3 de maio de 2012


Noitadas de farinhada

Hoje amanheci exaltando minha adorada infância, que os tempos não trazem mais. O vento frio soprou em meu rosto me fazendo lembrar coisas que me aconteciam quando ainda vivia com minha amada mãe. Não sei por que cargas d’água, lembrei as farinhadas de minha infância. Quase todo mundo tinha uma casa de farinha. E as casas de farinhas eram o nosso teatro, nosso cinema, nosso parque de diversões, nosso circo... Quando a mãe anunciava: “Hoje começa a farinhada de fulano!”, todos corriam e pegavam uma faquinha ou uma “facona” e direcionavam-se à casa de farinha. A vizinhança toda se fazia presente, embora fosse pouca a mandioca a ser transformada em farinha. Enquanto alguns raspavam a mandioca, outros lavavam, serravam, imprensavam, retiravam a goma, torravam, faziam beju, outros ficavam a entreter-se e a entreter os que estavam trabalhando com conversas, seja lá sobre que assunto fosse e a garotada ora ficavam a ouvir, ora ajudava, ou então estava a brincar, do lado de fora da casa, de cabra-sega, esconde, caí no poço, ciranda, guerra e tantas outras brincadeiras que não me saem da memória. Eu gostava de brincar é claro, mas o que mais me agradava era ouvir aquelas conversas de adulto: piadas, “falanças” da vida alheia, ou da vida dos presentes mesmo. Tinha aqueles ousados que contavam histórias sobrenaturais de almas, lobisomens e tantos outros seres que eu nunca vi, mas eles sim e narravam a história toda, onde, quando e como tinha acontecido. Aquilo tudo me deixava fascinada, embora depois, com muito medo, voltava para casa grudada na barra da saia da mãe de tal forma que não podia o vento balançar uma folha a meu lado que eu seria capaz de me borrar toda. Alguns metidos a artistas cantavam animando a noitada da farinha. Isso, às vezes, durava dias, dependendo da quantidade de mandioca que tinha. Sempre tive a impressão que os trabalhadores, homens e mulheres de bem, faziam-se demoradas no trabalho só para a farinhada durar mais dias, ou talvez fosse só ideia boba da minha cabeça. Verdade é que eu faltava pedir para que eles fizessem isso. A infância ia passando e eu entrava numa fase interessantíssima, a fase da adolescência, das paixões, dos amores e desejos ardentes. E a farinhada acompanhava-me. Desta vez eu não ficava só ouvindo, ou brincando e já não trabalhava por prazer. Pois o que queríamos mesmo era estar lá fora a inventar poemas e paquerar um vizinho bonitinho que há tempos as meninas comentavam sobre suas qualidades. Mas nossas mães nos punham a descascar a mandioca, ficava agradável se o tal rapaz estivesse também trabalhando. No meio da conversa dos adultos ficávamos a trocar aqueles olhares comunicativos mais que palavras. E isso era bom!
Quando conseguíamos escapar de nossas mães, ficávamos lá fora sentados ou numa calçada ou numa raiz de uma enorme arvore a inventar poesias, a declamar as que já existiam, a tentar adivinhar aquelas adivinhaçõezinhas, a cantar e assim namorávamos. As mais ousadas e os ousados afastavam-se um pouco e ficavam no escurinho. De lá só ouvíamos sussurros e estalar de beijos. Nós ficávamos a rir baixinho e a vigiar. Todos nervosos, não mais que os enamorados, mas sim, também ficávamos, sobretudo quando alguma mãe soltava aquele grito chamando a filha ou o filho.
Dava-nos aquela sensação gostosa de medo e prazer. Medo de sermos pegos por nossas mães, ou pior pelos pais, e prazer por estarmos burlando as regras daquele jogo que se chamava educação familiar. Prazer por finalmente conseguirmos uns beijinhos do garoto cobiçado, ou simplesmente por estar no meio da turminha jovem.
Quando já estava no finalzinho, já tarde da noite, corríamos para dentro da casa. Era hora de dividir os bejus, cada família presente levava um beju enorme para casa, um pouco de farinha... Nós dávamos um jeito de começarmos a comer o beju logo ali.
Eu ainda gostava de ouvir as conversas dos mais velhos, gostava dos grupinhos de jovens ouvindo e criando poesias, das brincadeiras e dos namoricos, das cumplicidades e dos comentários entre as meninas e sem sombra de dúvidas dos comentários dos meninos. O triste é que ficávamos adultos com o passar do tempo e muitas meninas passavam dos sussurros e beijos estalados e tornavam-se mães e logo casavam, outras feito eu, íamos para a “cidade grande” estudar e acabávamos trocando as casas de farinha por teatros, cinemas, parques e circos modernos. Nunca pensei que aquele lugarzinho que me fazia tão feliz fosse mudar tanto. Hoje quase não se vê uma casa de farinha, quase não se vê a vizinhança reunida e as brincadeiras e namoricos foram substituídos pela virtualização. É bom retornar aquele lugarzinho de minha infância e saber que na casa de fulano, distante de casa, vai ter farinhada e melhor ainda é saber que mamãe vai e assim poder ir também. Hoje já não ficamos brincando ou sendo cúmplices de namoricos, mas ainda nos resta ouvir a conversa daqueles mais velhos que lembram como era no tempo deles.

A.R.MORAES
  

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